segunda-feira, 30 de setembro de 2013

30 de Setembro

O herói de óculos

De todos os títulos [nem todos honrosos] concedidos ao herói nacional amhitariano Donyhor al-Temurbek o mais infame foi [talvez] o de Zybiat-ul-Ilyos, que [em interpretação não isenta de arbitrariedade] tem sido traduzido como O Supremo Garoto Pacato e Estudioso.

Hipocrisia de uma Sociedade que prega uma coisa e valoriza outra! – disse em [raro] rompante de paixão do geógrafo Serguei Kovinev, o qual também cedo aprendeu o ditado Larga desses livros e vai brincar na rua, menino! – cuspido pela mãe a cada dia sim e no outro também. [Nisso continuava uma tradição de autores amhitarianos, todos eméritos meninos sardentos de óculos fundo-de-garrafa].

A tal infame versão pregava que o pequeno Temurbek atravessou a infância e a adolescência entre tomos de enciclopédia e reclamações de avós, mãe e irmãs, e os gritos dos garotos a correr na calçada [que soavam como música a seus ouvidos, só que como música de pterodátilos tocando violinos desafinados]. Isso além da inexistente namoradinha.

Um grupo de garotos [não surpreendentemente] pálidos, magros e com os inevitáveis óculos conseguiu em 1973 a consagração do dia de hoje a esta versão do grande vulto nacional. [Para escândalo dos ortodoxos, que queriam um Temurbek desbravador de batalhas e garotas]. Na prática, hoje é conhecido como Dia dos Nerds, e se comemora com cachorros-quentes com excessiva mostarda e apostilas picotadas ao vento – mas isso [as dúvidas são poucas a respeito] não passa de gozação.

domingo, 29 de setembro de 2013

29 de Setembro

A Muralha de Espelho

Os best-sellers e historialistas [nem historiadores nem jornalistas] declararam guerra aos mitos. Essa cruzada [não restrita a Amhitar mas que embebe o mundo] é levada tão a sério que não são poucas as vezes em que criam os mitos para terem o prazer [e o mérito] de serem seus destruidores.

A galante terra amhitariana em 1990 [em um dos últimos atos do governo do Partido] mais uma vez reafirmou sua vocação de Terra Única, Diferente de Todas as Outras [por sinal um verso de seu renegado hino nacional] ao declarar hoje o Dia Nacional da Muralha de Espelho.

Caso raro de lenda que depois se revelou real, o tal muro [cuja extensão é ainda objeto de acirrados debates] se estenderia ao longo da fronteira com o Turcomenistão, que tem com Amhitar a tradicional ranzinzice que se tem com povos vizinhos. Certo SemiSultão [ou Xeque, ou Vizir] teria mandado erguê-lo. As explicações do vidro em vez da tradicionalíssima pedra vêm desde os interesses do oligopólio vidreiro [não por acaso a razão preferida dos marxistas] até o amor do SemiSultão [ou Xeque, ou Vizir] por uma jovem Turcomena, de quem ele não queria perder a vista do seu passeio matinal.

Por tempos ridicularizada como lenda, uma expedição arqueológica encontrou os pedaços de vidro. Para não acirrar o desinteresse que a realidade sempre provoca, as excursões turísticas adotaram a explicação da jovem, da qual, quando os turistas são estadunidenses, os guias sempre afirmam que falava inglês.

sábado, 28 de setembro de 2013

28 de Setembro

O nascimento de Beethoven, o não magnífico

O medíocre Ludwig van Beethoven nasceu na data de hoje. Pouco menos de um ano depois o seguiram seus irmãos Abraham Lincoln, Michelangelo, a garota Cleópatra, Napoleão Bonaparte e Galileu Galilei.

Nilufar Yusuf [como todos os homens] queria ser grande. [E como virtualmente todos] percebeu que não o conseguiria. Mas em vez de ruminar desculpas [como virtualmente todos] decidiu Se não serei grande, meus filhos o serão.

E colocou grandes nomes em todos eles, com o [óbvio] plano de que grandes nomes atrairiam grandeza. [A escolha pelos ídolos do Ocidente se explica porque o realista Nilufar percebeu, naquele ano de 1899, ano anterior ao nascimento de Beethoven, que o Ocidente mandava no mundo, e Célebres Vultos devem estar com os Vencedores]. A cada criança que nascia Nilufar pensava através dele entrarei na História.

Beethoven foi quitandeiro, Lincoln cortava chapas de couro e se separou logo depois de casado, Michelangelo bebia nos fins de semana, Cleópatra ajudava o marido a cuidar de uma tinturaria e engordou como um balãozinho, Napoleão se tornou marinheiro e quanto a Galileu, saiu da escola por não aprender gramática e virou dono de açougue.

Nilufar viu tudo como fracassos pessoais. No seu leito de morte vizinhos tentaram consolá-lo dizendo que, afinal, tinha colocado pessoas dignas na face do planeta, com seus defeitos, é claro, como todos.

Não se sabe se morreu consolado ou não.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

27 de Setembro

A ilógica moeda

Mas na verdade foi um cãozinho chihuahua que, escavando o solo para fins higiênicos, redescobriu as três primeiras moedas da antiga civilização Khazyr. Tal fato [ocorrido hoje em 1929 nas margens barreirosas do lago Aydar] confere um toque de romantismo à [de outra forma monótona] narrativa da construção da Grande Via Da Revolução [um título pomposo para uma estrada estreita ligando Shmaarkhaant a Karakalpak] a primeira rodovia de Amhitar.

O quase obrigatório saque das moedas [escondido pela narrativa oficial e do qual participaram (vergonhosamente) operários e engenheiros] reduziu o seu número às três desenterradas pelo cãozinho.

De fato as moedas Khazyr pouco revelam: sem datas nem efígies, o que marca nelas é sua discrepância: uma em forma de estrela, outra de chave, outra de pavão, parecem vindas de países diferentes. Seus valores são totalmente fracionários: uma vale aproximadamente a raiz cúbica de 3.795; outra algo como 17,38649; outra, o produto de Pi versus Pi.

Durante tempos a explicação para tal maluquice foi que as moedas eram falsas. Alguém contestou: os Khazyr [com seu horror à lógica] criaram um sistema monetário feito para não funcionar. Todas as civilizações afirmam que o dinheiro não traz felicidade; os Khazyr viviam isso. O amor ao dinheiro é fruto de alguma lógica, algo que suas moedas não tinham.

Embora longe de unânime, tal explicação [da existência de um país ilógico] não deixa de ser mais interessante, e assustadora.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

26 de Setembro

O Linguista em seu Labirinto

A [não pouco estranha] história de Abdullaeva Behruz começou hoje [dizem] no ano de 1701 dos hereges. E começou-a dobrando uma esquina [na esquina não havia símbolos mágicos, sinagogas ocultas, seitas canibalísticas ou mesmo um bordel símbolo do mal – apenas uma sonolenta peixaria, o que (para os patriotas) cobre a história de encantadora banalidade].

Olhou para trás. E viu as costas de um rapaz de seus 14 anos que, tendo dobrado à esquerda [enquanto Abdullaeva escolhera a direita] se afastava. Parou, o rapaz também. O rapaz olhava para trás – percebeu: ele era ele, dois.

Continuou e na próxima esquina virou-se e viu outro rapaz, na verdade o mesmo [mas era outro] que também fizera uma escolha diferente.

E assim na próxima, e depois na outra. A chegar a casa assustou parentes, madrinhas e conhecidos ao abrir a boca – e dela saíram sons de um exotismo que um vizinho viajado pensou reconhecer: era um dialeto siamês do malaio.

Abdullaeva entendeu: por alguma razão os deuses [se os deuses existissem] deram a ele a capacidade de se dividir. E cada pedaço dele sabia uma língua. Abdullaeva [bradam seus entusiastas] aprendeu 7.777 línguas [outros dizem que sabia 11.112]. Quanto à história, o linguista às vezes calava sobre ela, às vezes dizia que era falsa e que, para aprender muitas línguas era preciso estudar meio século e 88 dias – método que [compreensivelmente] não teve muitos seguidores.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

25 de Setembro

A Inútil Ciência

Otabek Dilafruz entregou a parte um da sua Enciclopédia das Maneiras Científicas de Realizar o Nada hoje em 1927, e esse título tem sido [quase] unanimemente apontado como carente de adequação. Primeiro porque o cientista [sobrinho-neto do romântico historiador Dilafruz Michelet] não deu ao trabalho qualquer ordem, sequer alfabética, o que torna problemático o nome enciclopédia.

Depois porque não se trata de um livro mas de coletânea [ou amontoado, dizem os detratores] de folhetos, pedaços de filmes, quadros e esculturas com colagens de anúncios de gin e champanhe barato [dos quais o autor presumivelmente era aficionado], além de fotografias [algumas incluindo Budas barbados e moças que não se esmeravam em vestir demais].

E a terceira objeção: o trabalho de Otabek se propõe a instruir a Humanidade em atividades do tipo A Arte de provocar tempestades em outros continentes ao soprar as nuvens; ou Como construir um moedor de tempo; ou Da Real possibilidade de que o interior da Terra seja preenchido por doce de uvas passas [esta última, por incrível que pareça, teve uma tentativa de comprovação em 1938, abandonada quando a escavação chegava aos sete metros].

Otabek [ao contrário do que pensam alguns epistemólogos] não brincava. Acreditava que o Nada era o mais nobre que o Ser Humano pode fazer e se zangava com quem não era de acordo. Anos depois [dizem], morreu na Polinésia, num mergulho para provar a existência de Namor, o Príncipe Submarino.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

24 de Setembro

O herói de longas unhas

Quanto à acusação [não isenta de falsidade e suma injustiça] de que o sublime povo amhitariano imita bobas histórias de cabeludos de outras épocas, eu a refutarei agora sem a mais ínfima lasca de dúvida – e esta afirmação arredondada de despeito pronunciou-a o historiador Java Kharlilah na abertura de seu opúsculo Da Infâmia atirada contra nossa Terra quanto à história do Inexorável Gulshanoy.

O Inexorável de que fala o historiador viveu em época indefinida e quanto a seus feitos, eram pouco mais definidos: Gulshanoy [diziam] tinha a força de 11 homens, a destreza de 22, a pontaria de 44 sem que ninguém jamais soubesse a razão de tais esdrúxulos múltiplos. Era [não surpreendentemente] o terror dos inimigos Kazaks, os quais [igualmente dizem] dominavam então a amada pátria. Como todo herói, no entanto, Gulshanoy tinha uma fraqueza, a belíssima Nargiza, uma princesa kazak que conseguiu aprisioná-lo ao cortar-lhe as unhas. Redimiu-se no entanto a malvada, ao morrer junto com o herói quando este derrubou uma caverna soterrando os inimigos.

A história [obviamente] semelha demais com a de Sansão de certo livro do Oriente Médio e nem mesmo a erudição do historiador desconstrói isso. O máximo que ele consegue fazer é remarcar que o herói amhitariano é mais rude e selvagem que o outro pois sua força estava nas unhas, o que é mais honroso que uma força nos cabelos. Comentaristas afirmam [não sem certa razão] que esta conclusão faz pouco sentido.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

23 de Setembro

Muqaddas, o talvez

Ninguém sabe [ou só o sabem os deuses, na discutível hipótese da sua existência] em qual dia entronizou-se o Rei Muqaddas Jumanova. A data em que é comemorada [hoje] resulta apenas de que o Subcomitê Partidário de Datas Comemorativas Patrióticas, ao se reunir hoje em 1971, percebeu que o 23 de setembro nada tinha feito que merecesse celebração e resolveu preencher o vazio de festas.

Não só a data do Reino como também a do Reinado se encosta nas neblinas da incerteza, e esta metáfora [de gosto discutível] se justifica porque o longo período em que tal Reinado pode ter acontecido [que vai de três séculos a trinta milênios antes de um alegado Profeta herege, o tal Cristo] geralmente se imagina envolto em névoa [ou então em noite escura] mais ou menos como nas histórias em quadrinhos de Vikings [não isentas de popularidade em Amhitar – para escândalo dos patriotas].

Do Rei Muqaddas Jumanova nada se sabe – o que é costumeiro dos Reis das Vagas Dinastias Arcaicas – deles nada é conhecido a não ser que são celebrados conjuntamente no dia quatro de agosto.

A falta de dados exacerba a imaginação e Muqaddas oscila de jovem romântico a velho sábio [o que não é mutuamente incompatível, já que os jovens envelhecem]. Os conservadores o veem defensor da propriedade, os inconformistas de boina e barbicha guerrilheira; as moças o veem com flores na mão, as matronas como genro trabalhador e rico. Quanto a Muqaddas, se existiu, parece não ver nem se importar.

domingo, 22 de setembro de 2013

22 de Setembro

A lenda do Alegre Rei Akmal

O único problema da lenda do Alegre Rei Akmal é que ela é isso mesmo – uma lenda – e esse pedaço de discurso [evidentemente empapado de mau humor] pronunciou-o o geógrafo materialista Serguei Kovinev em 1942, em conferência no dia de hoje na Academia Soviético-Proletária da Ásia Central. [Como revolucionário, não se podia esperar dele outra opinião sobre um rei].

No entanto o Destino [se o Destino existisse] em muito complica um julgamento sobre o Alegre Rei Akmal [na verdade um Paxá]. Os testemunhos [caso raro na história amhitariana] se juntam unânimes em afirmar que foi ele o único potentado a se misturar ao povo sem guardas e sem ser degolado [outros tentaram andar sem guardas, com os resultados já imaginados].

Como todos os reis, o Alegre Akmal possuía conselheiros – feio, chatos, rosnadores e cheiros de intrigas. Como nenhum, Akmal ria deles – sendo uma de suas piadas pedir conselhos e, depois de recebidos, rir da cara dos conselheiros, repetindo o universal ditado de que Se Conselho fosse bom a gente não dava, vendia. Os conselheiros [e seus ardilosos conselhos] saíam humilhados, e o povo, feliz.

Uma das falhas da história [que dá munição a quem advoga sua inexistência], é que ninguém sabe direito a época de tal rei. Dizem que o Povo quis que ele fosse de todas as épocas – inclusive da futura [é a interpretação dos otimistas - eles sempre dizem presente].

sábado, 21 de setembro de 2013

21 de Setembro

O banal profeta

Só mesmo o Destino, a Eternidade, ou um dos deuses de dezessete braços da sub-seita Khazyr seriam capazes de explicar o sucesso de Nahrik Shuraz, ou como até hoje pequenos porém renitentes grupos ainda espalham sua palavra e o proclamam sábio. Esse reles moldador de telhas nada fez de extraordinário até certa idade [e mesmo depois dela, dizem os poucos críticos] – e de fato a longa barba esbranquiçada que desenvolveu depois dos cinquenta anos talvez tenha algo a ver com sua reputação de sapiência.

Tal reputação, começou a ganhá-la quando pronunciou sua célebre frase [hoje em 1867] Quando um caminho não dá certo, eu procuro outro caminho e quis alguma das entidades citadas no começo que esta fosse ouvida por alguém e popularizada como provérbio profético. Nahrik não estava em êxtase no momento – apenas procurava uma venda para comprar fósforos e tomara um caminho errado, enganado por uma placa indicadora enferrujada.
 
A partir daquele momento coisas como Quando estou cansado, eu descanso; ou Quando espero demais, ou paro de esperar ou continuo esperando; ou Para quem está com fome, a melhor coisa é comer [esta última alegadamente pronunciada diante de um leitão assado] ganharam multidões e pequenas editagens de bolso. Discípulos exaltaram a Excelsa Simplicidade do Mestre. Quanto a Nahrik, a estátua que lhe fizeram o retrata tirando um espinho do pé – episódio real que ganhou foros de Tabernáculo da Sabedoria.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

20 de Setembro

O Primeiro Detetive

Sorakh Jalol abria a programação de TV de Amhitar [após a saudação do Comitê do Partido] e o pioneirismo desta atração viria a ser mais lamentado que propriamente objeto de orgulho.

A história começou pouco antes do início do programa [o qual se deu hoje em 1950]: o Comitê pelo Entretenimento Proletário distribuiu umas centenas de caixas de madeira das quais saíam som e imagem de gente distante, as TVs. Depois da festa, descobriu-se que, além dos discursos políticos, pouco havia o que transmitir, ainda mais diariamente.

Vieram com a ideia de uma história, a qual, para poupar atores, teria basicamente os mesmos personagens principais e os mesmos atores secundários, os quais trocariam sempre de peruca e saia para interpretar outras pessoas no episodio seguinte: uma série.

Na Estrada: Sorakh Jalol tinha um nome bem mais dinâmico que o próprio espetáculo. Sorakh era um detetive que veio do nada, ou quase: não tinha pais, nem mulher, nem filhos; aparecia magicamente nos locais de crimes sempre com uma ridícula lente de aumento; seu detetive auxiliar Aziz Cute era um adolescente menos que boboca [tanto quanto Sorakh, que parecia ter sempre a mesma cara]. Juntos circulavam por uma Shmaerkhaant real mais por falta de dinheiro para cenários que por ideologia realista.

A série entrou na Lista das dez piores da História. Apesar disso não são poucos os seus fãs, que nas festas vestem o casaco típico do detetive Sorakh – apesar do sol de 40 graus.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

19 de Setembro

Ainda-não-existências

O Sultão Khaarun-el-Kachid fascinou Amhitar com sua chegada no ano 601, acompanhado de uma coorte de seis mil lanceiros montados em lhamas, sete mil caixas do fino vinho da Borgonha, oito mil toneladas de batatas para os banquetes palaciais, nove mil miniaturas em ouro do Portão de Brandemburgo e dez mil coroas tiradas do tesouro dos Otomanos e tal efeméride [celebrada a cada 19 de setembro, o dia tradicionalmente atribuído a tal fato] se torna ainda mais extraordinária pelo fato de que ainda faltavam uns bons novecentos anos para os Otomanos acumularem poder suficiente para roubarem coroas para depois as mesmas serem roubadas deles; que o Portão de Brandembugo não existia, pois a Prússia não existia para dar origem à Alemanha, a qual também dormia na mesma inexistência; que seria meio difícil um califa asiático se refestelar de batatas, pois as batatas ainda estavam sendo comidas pelos povos da América, e no resto do mundo nem se suspeitava de sua existência; que os vinhos da França ainda dormiam no limbo, pois a França ainda era um projeto, ainda mais as beberagens da Borgonha; e que seria um tanto difícil alguém ser Califa, ou seja, sucessor do Profeta Maomé, antes do próprio se tornar Profeta.

Essa falange de impossibilidades contribui para a popularidade da festa, marcada pelas bebedeiras de costume. Os historiadores gritam, os psicólogos explicam, os sociólogos ironizam e o povo festeja, sem ligar para essa tolice chamada realidade.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

18 de Setembro

O Inocente Sedutor

O Irresistível Aventureiro estreou hoje nos cinemas de Amhitar [e nos de Dacca, nos dos vizinhos Turcomenos, dos inimigos kazaks, na Índia dominada pelos ingleses e em toda a Ásia Central] hoje em 1918 [na talvez única bem-sucedida operação de lucro internacional engendrada por amhitarianos, para desespero dos nacionalistas]. Tal sucesso teve nome e cara.

Cara encimada por um cabelo soterrado em tinta preta [para disfarçar o tom natural louro-indeciso] e o nome centro-asiático trocado pelo pseudônimo Salvatore Marcciano [o duplo “c” foi acrescentado para charmosamente soar como “ch”]. Salvatore [cara sempre séria de conquistador, diante do qual princesas, coristas e virgens atestadas se derretiam] representava sempre homens confiantes, fortes porém protetores, dispostos a enfrentar o perigo pelas donzelas a quem conquistavam.

Desmancha-prazeres [eles sempre existem] afirmavam ser o tal Salvatore um perigo, pois antes dele [em Amhitar e no mundo] um homem [para conquistar uma mulher] precisava ser apenas um bom provedor e reprodutor. Depois dele, ainda se precisava acrescentar a arte da conquista e da beleza pessoal – um peso a mais para a raça masculina.

O pior baque, no entanto, veio quando um italiano, certo Rodolfo Valentino, imitou Salvatore, com sucesso muito maior. Para rebaixar o rival, críticos amhitarianos afirmaram que Rodolfo era na verdade um bobinho, que dormia só, pensando em mamãe – coisa que [dizem] também acontecia com Salvatore.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

17 de Setembro

O Fracassado Dia Literário

Khannat Nurayan lançou o seu Morte no Vale do rio Amur-Darya [o primeiro de uma série de histórias com o mesmo personagem] hoje em três lojas de livros na capital Shameerkhaant e tal dia [longe de causar uma onda de chauvinismo nacionalista] tem ocasionado anualmente não pequeno embaraço.

O enredo do curto romance girava em torno de Shohista Sardor, figura obesa de hábitos bobocas [como encerar bigodes e fumar cachimbo] que conseguia ter um estilo de vida caro sem ter emprego fixo, apenas com o que ganhava como detetive particular [o que gerou não poucas críticas à inverossimilhança de tal fato]. Shohista parecia ser inteligente o suficiente para resolver todos os crimes que lhe passavam na frente, mas azarado o bastante para atrair tais crimes [quando estava por perto sempre alguém caía envenenado ou estrangulado].

Para Khannat o mundo semelhava ser composto de gente rica cujo passatempo [à falta de melhor nome] consistia em fazer tramas complicadíssimas para matar uns aos outros, inexoravelmente descobertas pelo detetive Shohista.

Quatro décadas depois as traduções das histórias de Agatha Christie desembarcaram em Amhitar, e alguém lembrou que um amhitariano escrevera tramas bem semelhantes. O Governo oficializou o dia de hoje como o Dia do Pioneirismo Amhitariano na Literatura Policial. Talvez pelas pesadas críticas ao primeiro autor, disputa o dia de hoje o [pouco honroso] título de menos celebrado de todas essas Efemérides.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

16 de Setembro

Eles realmente existem até demais

O Primeiro Congresso de Ufologia do Turquestão tinha tudo prontíssimo [com não pequenas pompa e cerimônia e adolescentes dos dois sexos fantasiados de Ets (com direito a cartolina verde, antenas e tudo)] para declarar hoje [o dia de seu encerramento em 1995] como o Dia Centro-Asiático dos Contatos Verídicos e Fundamentados.

O excesso de testemunhos ocasionou o fracasso. Acostumados a sombrias aparições noturnas e testemunhos empapados de mistério do tipo Caso Roswell, os especialistas depararam com uma overdose de contatos do primeiro, terceiro e todos os demais graus ainda por inventar. Toda a população do país parecia ter um caso de encontro com seres extragalácticos.

Quase todos os contatos se referiam a criaturas chamadas Saticons, Katikons ou Saathicoons, que alguns amhitarianos bradavam serem baixinhos e amantes de rosas e outros afirmavam ser cruéis criaturas de um asteroide morto e cujo fim era dominar a Galáxia – a diversidade dos testemunhos era enlouquecedora. [A palavra de certo Bahodir, celebrado nestas Efemérides a 3 de Janeiro e que os ufólogos não conheciam, era sempre invocada]. O Congresso se dissolveu por puro cansaço.

O fracasso de tal iniciativa apenas gerou que os céticos de sempre conseguissem a declaração [não longe da facécia] do dia de hoje como a Jornada da Descrença em Bobagens de Outro Planeta, o que transformou Amhitar na Anti-Meca dos aficionados no assunto: os Ufologistas de todo o mundo fogem do país.

domingo, 15 de setembro de 2013

15 de Setembro

O Xeque Glutão

O Xeque Aryam Abdulloh ganhou o apelido de Nizilut-al-Akhromyr, dístico ininteligível até que uma arrumação no poeiral da biblioteca da aldeia de Moynaq desencavou um manuscrito do [inevitável] linguista Abdullaeva Behruz [do século XVIII assim como Aryam] e o papel revelou que aquilo queria dizer [banalmente] o Chefe Boa-boca.

Nem exagero nem metáfora: o Xeque Aryam [dizem testemunhas longe de desprezíveis] devorava três pavões, cinco frangos, dois peixes Guigluz das águas do rio Syr-Daria e como sobremesa enfrentava quatro gelatinas de Galo do Himalaia e ainda rebatia com uma pequena xícara de café do porto árabe de Mocha. Primeiro Gourmet amhitariano, Aryam, no seu reinado, esqueceu as estradas, as muralhas e palácios que geralmente fazem a grandeza dos reis.

Afirmava que encher a barriga é melhor que guerrear e em vez de querer tomar a terra dos vizinhos [esta o maior desejo dos soberanos, e o que os faz adentrar os verbetes da Encyclopaedia Britannica e da Wikipedia] preferia importar temperos, bezerros tenros e capões bem cevados, que desapareciam depois de poucos banquetes em palácio.

Os empreiteiros de muralhas [e os generais a pique de ficar sem emprego] espalharam para o povo que aquele glutão era seu inimigo, que zombava de sua fome. O povo escutou e escorraçou o Xeque, que foi substituído por outro, que cancelou os banquetes e empreendeu guerras contra os países em volta, nas quais morreram não poucos dos que derrubaram o Xeque Glutão.

sábado, 14 de setembro de 2013

14 de Setembro

Em todos os lugares

Uma das versões afirma que os Sumos Sacerdotes da terceira Sub-seita Khazyr [em sinal de desapego às coisas mundanas] celebravam seus ritos como certo Adão, de uma seita do Oriente Médio, antes da sua queda. Esta ideia é desde algum tempo felizmente tida como apócrifa, e o felizmente aqui se deve ao mau humor do cronista Iusya Marzhaffar, para o qual a visão de cavalheiros de meia-idade com tal indumentária seria um atentado não só à divindade quanto à estética.

Mesmo falsa a versão, é verdadeira a pouca mundaneidade desta seita [da qual as estimativas de fiéis hoje variam do número de setecentos mil (geralmente considerado absurdo) a zero (que por alguns não o é)]. Mircea Eliade, no seu clássico O Sagrado e O Profano, afirma haver uma distinção entre os lugares desses dois tipos. A Sub-seita desmente o prestigioso sociólogo, pois os cultos Khazyr [diz a quase totalidade das testemunhas] realizavam-se em corredores, banheiros coletivos, armazéns de favas, e seus sacerdotes [assim como os fiéis] realizavam suas tarefas coçando-se, bocejando ou interrompendo em voz alta a perguntar pelo cardápio do almoço.

Longe de ser desrespeito [afirmavam os adeptos] tal atitude apenas fazia da seita a única religião sincera, pois todas afirmam que Deus está em todos os lugares mas criam prisões especiais para ele, com estátuas e silêncio. Quanto ao Deus dos Kahzyr, ele se encontra realmente em tudo – inclusive e [e principalmente] na banalidade.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

13 de Setembro

Nacional Pássaro

O Dorhumil [dizem] viaja o mundo todo. [A mais modesta versão afirma que percorre três voltas e meia o globo. Uma pesquisa mais recente fornece a cifra mais realista (mas ainda assim fantástica) de metade da circunferência do planeta]. Suas quatro asas sempre foram o espanto da meninada que escutava a história do Pássaro Nacional de Amhitar [honra no entanto disputada com o estranho Eskualdualk, que certas versões não isentas de sadismo terminaram por afirmar que este era o pássaro noutras línguas conhecido pelo nome de galinha].

Por mais irrealistas que sejam essas quatro asas, elas o são bem menos que as quarenta que biólogos (presumivelmente) embusteiros do Zoológico de Shamerkahent a eles atribuíram. [De fato afirma-se (não sem algum fundamento) a sesquipedal malandragem de tais zoólogos – certo touro deles, de sete chifres (o Takhvazz) na verdade era touro comum, apenas com uma tola mutação não-hereditária].

Dizem que o Dorhumil representa a única ligação de Amhitar com certo estranho país no Fim do Planeta, país esse que se afirma tropical e alegre por natureza. O Dorhumil, por suas asas [e por seu granado que, embora horrível, dizem trazer boa sorte] é pássaro estranho. Afirmam que o país de onde vem é grande, seus habitantes se sentem inferiores a todos os outros e remetem a felicidade nacional a um futuro que nunca chega.

O estranho lugar de onde migra apenas acrescenta à estranheza do Dorhumil.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

12 de Setembro

Malvados exilados

Todos os países decentes do mundo têm uma família real exilada: os russos [odiados antigos dominadores de Amhitar], os sérvios, os franceses, os egípcios. Quanto aos americanos, para que serve a família Kennedy? E os ingleses ainda terão. Rárá!

Essa velha piada amhitariana [um tanto destituída de graça] sempre introduz notícias [nem sempre dadas com simpatia] sobre os Muxlisas, a família real do país.

As informações sobre o velho Muxlisa [em todas as épocas sempre há um “velho” da família] se contradizem tanto quanto os livros de história que se referem à antiga casa reinante: terra de xeques e paxás [e depois de governadores militares czaristas e depois ainda de comissários do Partido Soviético] Amhitar só esteve 49 dias em sua história à disposição de uma família real. [82 dias segundo outros; apenas 7 de acordo com alguns exaltados antimonárquicos; de qualquer forma a versão de que a monarquia amhitariana durou sete anos parece exagerada e apócrifa]. A maioria das versões diz que o curto período de poder aconteceu em 1916, embora alguns o coloquem em 1897.

As notícias sobre a família Muxlisa [descendente do Rei Dhoraf Muxlisa, o único de Amhitar] sempre se referem à caçula da família [sempre há uma], que encarnaria a maldade e a sedução.

Na verdade, a Sabina Muxlisa tem uns quilinhos a mais, usa óculos verdes de garrafa e ensina trigonometria numa pacata High School na Pensilvânia, mas isso pouca diferença faz para os republicanos.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

11 de Setembro

Lenda roqueira

Tricia, Carolyn, Brittany e uma única com o nome afrancesado de Michelle não se chamavam assim, nem de perto. [Fizeram questão de enterrar seus típicos nomes centro-asiáticos sobre toneladas de esquecimento] e essas quatro jovens [nenhuma tinha mais de 21] abalaram a cena underground do país hoje em 1970. A baixista Brittany, a guitarrista Michelle, a vocalista Carolyn e a baterista Tricia com seu rock pesado e extravagante trouxeram a cultura do Sexo, Drogas e Rock´n´roll para a Ásia Central.

Isso na lenda.

Excetuando-se o apoio do filósofo da contracultura amhitariana Utkirbek Lennon, bem pouco liga as garotas a nada que parecesse uma vida mais livre. [E as notícias de que o barbudo filósofo realizava ações pouco recomendáveis com elas é desmentida pelo fato de que Utkirbek na época passava 200% do seu tempo alto – sem que isso se referisse às elevadas montanhas do planalto do Pamir]. De fato o som das meninas era bem macio – suas canções falavam de amores de fim de tarde e no máximo de beijinhos roubados em festas adolescentes.

Nada disso impediu a lenda [que rolou como bola-de-neve] de quatro messalinas asiáticas em festas estritamente proibidas para pessoas que dessem o mínimo valor à inocência. Mas na verdade o primeiro conjunto roqueiro feminino amhitariano tinha o inocente nome de Amhitar Cor de Rosa, e suas quatro componentes [dizem] dormiam agarradas com ursinhos.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

10 de Setembro

O Inferno nacional

No dia em que completou 35 anos [o que aconteceu exatamente hoje no ano de 1501 dos hereges] o tintureiro Charos Zafar se embrenhou em uma floresta densa e úmida perto da cidade santa de Shmaerkaent. Topou com três porcos-espinhos [um deles com atitude de poucos amigos] e [pulando de medo] encontrou um garoto chamado Akmal Danyior e as semelhanças com a Divina Comédia de certo poeta florentino por aí param. [De fato o ridículo das tentativas nacionalistas de afirmar que o famoso livro foi plagiado de Amhitar esbarram no fato óbvio de que o congênere italiano data de uns quase dois séculos antes da aventura de Charos].

Para começar, Dante não era, obviamente, tintureiro. O guia de Dante, o poeta romano Virgílio, era mais velho que seu pupilo, enquanto Akmal pouco ultrapassava os catorze. O poeta italiano começa sua aventura perto da cidade santa de Jerusalém, enquanto a capital amhitariana [os testemunhos são unânimes] pouco tem de santidade.

A maior distinção entre a aventura dantiana e a amhitariana no entanto é que, enquanto a primeira consiste numa diversificada descida a diversos tipos e matizes infernais, o afundamento de Charos se repete na mesma paisagem, com os mesmo pássaros negros [que em dois minutos já perdem a novidade] e os mesmos gemidos [que em pouco não comovem mais ninguém].

O inferno amhitariano é só um grande buraco, e a monotonia é a sua grande punição. O que talvez o torne mais infernal que o outro.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

09 de Setembro

O apaixonado dostoievskiano

Uma pesquisa [talvez] tão espúria quanto a redondez de seus números concluiu que a população de Amhitar se dividia em 30% de assassinos caridosos, 25% de prostitutas de coração de ouro, 20% de jovens nobres obcecados por fazer o bem na vida, 15% de mocinhas malucas capazes de fugir por um amor louco e os restantes 10% de pessoas normais, sendo esta última cifra um tanto duvidosa.

Foi ela publicada na Gazeta de Amhitar no dia de hoje em 1882 e objetivava criticar a influência [para o autor excessiva] da literatura russa sobre a cultura amhitariana.

Para o [anônimo] autor, as maluloucuras dos personagens de Dostoievski e Tolstoi faziam o país se encher de tabernas, estas se encherem de rapazes amalucados, estes à procura de grandes feitos a fazer [e também de garrafas de vodca, para grande peso para o balanço de pagamentos nacional, pois Amhitar não produzia sequer uma gota]. Pior ainda [diz o talvez excessivamente apaixonado articulista] essa proliferação de estudantes embriagados de amor pela humanidade e também de álcool, e a igual multiplicação de mocinhas capazes de renegar até a quarta geração da família por um amor louco podia levar à proliferação dos assassinatos e das fugas.

Concluiu que nada mais restava para Amhitar [e para o mundo] que a paixão, a paixão embriagadora e aterradora, capaz de tudo amassar com sua presença – e se descobriu que até ele, articulista, se encharcara da maluquice literária da época.

domingo, 8 de setembro de 2013

08 de Setembro

Dia da Nacional Beberagem

Naquele tempo [sem que ninguém consiga precisar que tempo foi esse] havia cinco bebidas no país: a água lamacenta dos rios, a bolorenta dos potes, a arenosa das fontes, a salgada do mar, e um quinto tipo que era fina mistura dos quatro primeiros, este reservado a gourmets. Tal piada [mais melancólica que engraçada] se conta como preâmbulo:

Um menino [que ninguém se preocupa em dar o nome] caminhava [previsivelmente sozinho] numa estrada quando um pé de vento o levou mais alto que os mais altos minaretes das mais altas montanhas. Sobre as nuvens encontrou Buda, Alá, Jeová, Jesus, e [numa curiosa concessão nacionalista] o herói patriota Donyhor al-Temurbek. Estes lhe entregaram [em pergaminho de ouro que inevitavelmente depois reclamaram de volta] uma receita que [segundo suas divinas palavras] tornaria a amhitariana vida menos aborrecida – receita esta que a mãe do garoto [já de volta a terra] seguiu, e daí resultou o Mhir´raz ou Mhirraz, a bebida nacional.


Algumas bebidas vêm da uva, outras da cana, outras do malte e seus países sempre as atribuem ao gênio nacional. A bebida de Amhitar vem dos deuses e como os deuses não revelam segredos, também nunca disseram como devia ser feita. Isso aumenta o brio nacional e também o lucro dos fabricantes, pois o Mhirraz pode ser feito com leite de Iaque, pão amanhecido, restos de vinho ou uma mistura de serragem com pó de café e ninguém pode reclamar, pois afinal não se sabem os caminhos dos deuses.

sábado, 7 de setembro de 2013

07 de Setembro

Ascensão e Queda de Nuri O Grande

Às sete horas da manhã de hoje em 1955 Nuri Zakhremat colocou sua gravata. Beijou sua mulher seu filho e sua filha feinha e partiu para seu emprego de subchefe da contabilidade da fábrica de cigarros. Às nove, conversando na roda do café, seus colegas acharam que falava bem, colocaram-no nos ombros e o proclamaram líder. Ao meio-dia fora declarado chefe da fábrica, para uma hora depois ser chefe da cidade [o prefeito atemorizado lhe entregando uma chave simbólica de papelão].

Às três horas no seu quartel-general [já tinha um] chegavam telegramas de apoio – uma a uma as cidades do país se entregavam à sua liderança. Às quatro um comício monstro engolfou a capital e a multidão gritava Nuri! Nuri!

Às sete da noite, as elites, os militares , os burocratas, a CIA e os malvados em geral conspiravam para sua derrubada. Às nove a enorme pressão o obrigou a declarar por lei a Felicidade Geral, para gáudio do povo e ódio maior dos inimigos. Às dez os tanques rolavam contra ele.

À meia-noite um tiro ecoou no Palácio Presidencial.

Seu corpo nunca foi encontrado; foi enterrado em segredo; ou, vivo, fugiu para as Bahamas e mais 776 versões outras.

A vocação amhitariana para a cópia servil explicaria a trajetória de Nuri. [Dizem não sem mau humor]. Líderes histriões e meio suicidas [os Nasser, Perón, Getúlio e Tito da vida] pululavam nos anos 50 – e Amhitar, talvez [mesmo] por instinto de imitação, não quis ficar de fora.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

06 de Setembro

Ladros Eufemismos

...E eles me levaram para ser hóspede, e me ofereciam três refeições por dia, completamente gratuitas, e guarda permanente à minha disposição [Ele foi preso]. Um dia achei as coisas muito monótonas e saí [Ele fugiu]. Ao passear na beira do rio perto do local onde passei minhas férias [ao correr fugindo da Penitenciária], tive a boa sorte de encontrar um barco por ali, cujo proprietário sem dúvida era amistoso e não se incomodaria. Eu o tomei emprestado [ele o roubou]. Os empregados do local de onde eu saíra me viram e reagiram de maneira hostil [os guardas abriram fogo]...

E assim continua a narrativa do gordo, cara-vermelha, olhos-esbugalhados Nasum Rodraz, o ladrão redondo, do qual nem mesmo os 999 deuses atribuídos por alguns ao Panteão da Seita Khazyr seriam capazes de explicar a sua presença em uma lista oficial de comemorações diárias de um país. [Embora um desejo nacionalístico de emparelhar com a Inglaterra (a qual de certa forma se orgulha de seu Jack The Ripper) não esteja fora de cogitação].

Mais interessante que a carreira de Nasum talvez seja sua [não menos infame] aposentadoria. Nos finais de tarde [era lá pelos anos 1900 e pouquinhos] crianças e depois o resto se reuniam para ouvir suas histórias de carteiras surrupiadas e carreiras levadas de policiais. O jeito doce com o qual contava suas safadezas seduzia, e alguns pressurosos pais tinham de explicar a seus filhos que ser um descuidista não é uma coisa boa.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

05 de Setembro

O Dia Nacional dos Anjos

Iroshka Laziza caminhava sete quilômetros, levando sete peixes, em sete pequenas cestas, para sua família que tinha sete membros. [ Inevitavelmente a menina Iroshka tinha sete anos e a coincidência de números, da qual só escapa a data 5 de setembro de 1819, apenas acrescentou credibilidade ao seu relato.]

Viu sete homens: nem velhos nem jovens, nem belos nem feios, nem hostis nem mesmo amistosos. Pediram sete pedaços de pão [a menina, como sabemos, só tinha peixes]. Ela quis dar só um pouquinho. [Eles comeram tudo]. A pequena Iroshka chorou. O sétimo deles fez um movimento de mão.

Ao chegar a casa a menina tinha sete peixes de prata. Os interrogatórios [primeiro da família, depois dos vizinhos, depois da polícia] concluíram que Iroshka se encontrara com anjos. [Uma busca no mesmo lugar nada revelou exceto pegadas de chacais, perigosíssimos para uma menina sozinha].

As versões de que a menina roubara; de que encontrara um tesouro; de que seu pai é que roubara e a utilizara para contar essa história num primitivo caso de lavagem de dinheiro pulularam. [A versão de que parte fora criação dela ganhou corpo quando, muito depois, sua bisneta se tornou a doce poetisa Iroshka Maruf, que teria herdado seu dom imaginativo].

O governo nacional [em decreto surpreendentemente pouco controverso] tornou Amhitar o único país do mundo a festejar os Anjos. [Se fosse em país rico tal data seria objeto de inveja, dizem os patriotas]. 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

04 de Setembro

Falso

O Da Falsificação como Gênero Literário surpreende primeiro por não ser literário: trata-se de filme, cuja estreia em dezessete cineclubes se deu [surpreendentemente] na vizinha [e não muito amistosa] República do Turcomenistão, para ser exato na sua capital Ashkabad, hoje em 1951.

Seu enredo revela a segunda surpresa: o filho de um milionário recebe um jornal como herança. Resolve então trabalhar numa fábrica e quase é engolido por uma gigantesca roda de engrenagem dentada. É o tempo da Guerra Civil Americana e uma frívola herdeira de fazendeiro apaixona-se por ele num amor louco. Essa misturada logo mostrou a mais de um cinéfilo esperto que o filme não o era, e sim uma colagem de pedaços de celuloide do Cidadão Kane, Tempos Modernos e E o Vento Levou [junto com pequenos trechos de filmagem caseira na qual ao fundo se podiam ver camelos numa cena que presumivelmente se passava no centro de Baltimore].

A terceira [e talvez magna] surpresa deu-a o próprio diretor. Longe de ser um semi-adolescente revoltado quase que ex-officio, Nozimjon Utkirbek contava com boas quatro décadas de poemas não publicados e pedaços de celuloide [além da inevitável fama de velho maluco].

Não surpreendentemente, seu neto Utkirbek Lennon depois também decidiu que a vida é séria demais para ser levada como se deve. Quanto ao velhinho, o pessoal da cultura hacker hoje o incensa como pioneiro, embora a indústria cultural [não surpreendentemente] o qualifique de Velho Plagiador.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

03 de Setembro

A Ponte

E Nikita Sergueievitch Kruschev pisou o chão amhitariano! O Manda-Chuva da União Soviética veio [neste 3 de setembro de 1964] inaugurar a ponte sobre o rio Amur-Daria, orgulho da engenharia bolchevique e motivo de medo para o comissariado do Partido [medo de que o poderoso descobrisse que a ponte estava sendo inaugurada pela sétima vez].

Trouxe consigo sua lendária cabeça de ovo [careca à prova de fios de cabelo] sua pança também em forma de ovo [à custa de banquetes de pastelão da Ucrânia], dezenove caixas de vodca da bacia do Donetsk e dois turboélices Tupolev da companhia estatal Aeroflot ensardinhados de puxa-sacos [alguns não muito confiáveis, como a história tristemente ensinaria].

[Ninguém lhe disse – e nem ele perguntou – que um tal de Alexandre o Grande (dizem) inaugurou de primeiro aquela ponte – e que a atual não estava concluída – os dois últimos setores se seguravam só pela armação de madeira].

Ergueu 289 brindes à Revolução Proletária, disse que o falecido Kennedy era um chato com uma esposinha muito gostosinha, informou que Deus não existe e se foi pouco antes de cair em coma alcóolico [dizem seus inimigos, o que torna esta informação de confiabilidade duvidosa].

Um mês depois os tais inimigos o acusaram de incompetência e lhe deram férias forçadas [e sem prazo] em casa, com sérios conselhos para não tentar sair dela.

Por essa, Amhitar ganhou fama [talvez injusta] de ser terra azarada.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

02 de Setembro

Chatos-vivos

O problema dos Zumbis de Amhitar é a sua inexistência – e esta frase [não isenta de mau humor], pronunciou-a [previsivelmente] o Subcomitê ateu amhitariano, em sua reunião de 25 de dezembro de 1934 [para afrontar, os membros se reuniam em festas religiosas]. Mais que uma falta de graça, pragueja tal lema uma falta de originalidade – afinal, seis décadas antes Aleksiei Rostov publicara folheto de título quase igual sobre o assunto.

Padre ortodoxo, o Pope Aleksiei [diante da hostilidade dos locais a um dominador estrangeiro russo] usava o grande tempo livre para vagar à noite pelos beiradas de uma vila de Navoiy que sequer sonhava o que fosse iluminação pública. [Detratores atribuíam essas caminhadas noturnas a um antigo crime que atormentava sua consciência, enquanto os românticos preferiam falar da lembrança de alguma princesa].
Inevitavelmente espíritos passaram a segui-lo. No começo Aleksiei deles tinha medo. Depois passou a se acostumar com sua companhia e finalmente a aborrecer-se com ela. Gemiam na hora errada, tentavam assustar sem sucesso e a repetição de suas histórias de afogamentos e facadas as tornou inócuas. Pior: quando o padre se recolhia, já perto da manhã, sempre algum zumbi chato aparecia para falar-lhe de pulos em lagos por amores não correspondidos.

Tanto por amor à ciência como [dizem] por vingança o Pope publicou seu folheto O problema dos Zumbis de Amhitar é sua Impertinência, o qual [surpreendentemente] não foi isento de  sucesso.

domingo, 1 de setembro de 2013

01 de Setembro

Disfarçados

Os demônios perseguiram Dasha Ulugbek no deserto de Qyzylorda durante 39 dias e 40 noites. Incialmente batiam [ou pareciam bater] tambores – e o famoso andarilho [apesar de famoso] deixava que o medo o invadisse e corria [em meio às rochas e à noite].

Mudaram de tática e se transformaram em serpentes – e o ruído de suas caudas fazia Dasha interromper suas sonecas e correr pela vida.

Depois se lamentavam – como espíritos de eterna queixa – que falam de oportunidades perdidas e amores que não mais voltam– e Dasha ouvia com clareza [e gelava ao fazê-lo] a voz do seu avô falecido onze anos antes chamando-o para passear na brisa da manhã.

Na quadragésima noite [exausto de medo e noites sem dormir] o andarilho fez meia volta [a falta de sono torna insano ao mais sábio]. Parou e esperou.

Vieram em forma de três meninos [dois meninos e uma menina]. Maltrapilhos de partir corações [rostos sujos e com remelas]. Disseram ser órfãos, e que viviam dos restos de comida que os caravaneiros lhes davam.

Dasha não acreditou. Depois, tremendo, partiu metade de seu pão preto. Vendo como os demoniozinhos comiam com avidez, deu-lhes dois terços de sua carne seca. Comeram, fizeram seis reverências e foram embora.

Dasha [sozinho de novo] decidiu que os demônios disfarçados de crianças eram crianças mesmo. E decidiu que esta seria a versão em que acreditaria. E que os barulhos que ouvira eram frutos do demônio sim, mas de um só – aquele do medo.